Sistemas de medicina de emergência (EMS) em todo o mundo aplicam rotineiramente colarinhos cervicais semi-rígidos a todos os pacientes feridos com um mecanismo de lesão significativo. Embora a colocação destes pacientes em colarinhos cervicais seja uma das intervenções mais comuns realizadas pelos prestadores de EMS, a ciência por detrás desta prática é limitada, e as consequências podem nem sempre ser benéficas. A reavaliação da imobilização rotineira da coluna cervical está a desafiar o dogma actual.1,2
p>Benefícios da Imobilização da Coluna Cervical
O conceito de imobilização da coluna cervical foi desenvolvido como um mecanismo para manter a coluna em alinhamento neutro após uma lesão suspeita e para prevenir danos futuros através da imobilização de uma lesão potencialmente instável. Esta prática foi adoptada pelo Colégio Americano de Cirurgiões, que recomenda a imobilização imediata da coluna cervical para todos os pacientes traumatizados, uma vez que todos são considerados em risco de lesão da coluna cervical.3 Contudo, as provas por detrás desta prática tiveram origem na opinião de peritos e consensos após estudos mínimos realizados em unidades vertebrais hospitalares numa altura em que o SEM e os sistemas de trauma estavam na sua infância.4-6
Embora a eficácia da imobilização da coluna cervical nunca tenha sido examinada em pacientes com traumatismos reais, continua a haver um número limitado de estudos que examinam o movimento da coluna vertebral num ambiente simulado. Por exemplo, um estudo utilizou voluntários saudáveis e mediu os seus movimentos do pescoço numa variedade de dispositivos de imobilização. Os resultados mostraram que sacos de areia, colarinho rígido e fita adesiva eram a forma mais eficaz de imobilização do pescoço.7
O geral, não parece haver qualquer evidência clara disponível para apoiar a utilização de colarinhos cervicais – o benefício parece ser largamente teórico.
Riscos de imobilização cervical
Embora os dados que descrevem os benefícios da imobilização espinal sejam limitados, vários estudos questionaram a utilização quase universal de colarinhos cervicais, dado que a incidência global de lesão cervical em doentes traumatizados é baixa. Em dois estudos sobre pacientes traumatizados que foram considerados de alto risco de traumatismo craniano e cervical, houve uma incidência global de 0,7% de lesão significativa da coluna cervical.8,9
Outros estudos demonstraram que os colares cervicais não restringem o movimento do pescoço, mas permitem aproximadamente 30 graus de flexão/ extensão/rotação.10,11
Likewise, não foi demonstrado que a imobilização afecte a incidência de lesões neurológicas em pacientes com traumatismo da coluna cervical. Numa coorte prospectiva de 4 anos de pacientes com lesão vertebral cervical confirmada, 8% dos pacientes não tiveram a sua coluna vertebral imobilizada – resultando em nenhuma consequência clínica ou progresso para défices neurológicos.12
Num estudo recente comparando a incidência de lesões cervicais num país de primeiro mundo em que os colares cervicais são quase universalmente aplicados, num país de terceiro mundo que não utiliza colares cervicais, houve menos incapacidade neurológica nos pacientes não-mobilizados.13 Embora existam numerosas falhas neste estudo, ainda se espera um aumento acentuado do número de lesões secundárias da coluna vertebral nos doentes não imobilizados, mas isso não foi encontrado.
Finalmente, existe um conjunto crescente de literatura que mostra que os colares cervicais são francamente nocivos,14 uma vez que aumentam o risco de aspiração,15 tornam a gestão das vias aéreas mais difícil,16 e aumentam a pressão intra-craniana (PIC) através da redução do retorno venoso.17,18
Recomendações actuais
Com as directrizes do American College of Emergency Physicians, da American Association for Neurological Surgeons, do National Registry of Emergency Medical Technic.ians e do Congresso de Cirurgiões Neurológicos, existe um claro consenso ao recomendar a imobilização da coluna vertebral de todos os pacientes traumatizados com uma lesão conhecida ou suspeita de lesão da coluna cervical no contexto pré-hospitalar.17-19
Adicionalmente, múltiplas directrizes recomendam a utilização de ferramentas de decisão clínica – os critérios NEXUS ou a regra canadiana da coluna cervical – para orientar a utilização da imobilização da coluna cervical e recomendam que os doentes totalmente acordados e comunicáveis que não estejam intoxicados, sem dores ou sensibilidade no pescoço, sem lesões que distraiam, e que estejam neurologicamente intactos, não devem ser imobilizados.
Estas directrizes estão geralmente em conformidade com as declarações políticas da ACS, bem como com o corpo crescente da literatura pré-hospitalar e as directrizes de gestão das lesões da coluna cervical, uma vez que todas elas afirmam que os colares são eficazes na limitação do movimento da coluna cervical e devem, portanto, ser utilizados até que o paciente seja devidamente avaliado e a coluna cervical seja removida.
Conclusões
A imobilização da coluna cervical tem sido, desde há muito tempo, um dos principais factores da medicina extra-hospitalar. Tem sido instituída como uma necessidade de gestão pré-hospitalar, embora os benefícios da imobilização universal não sejam claros e os potenciais danos tenham sido demonstrados. Embora as directrizes continuem a apoiar a imobilização da coluna cervical, há um conjunto crescente de literatura a desafiar o dogma actual e a levar a uma reavaliação da imobilização da coluna cervical.
1. Deasy C, Cameron P. Aplicação de rotina dos colarinhos cervicais – quais são as provas? Lesão. 2011;42(9):841-842.
2. ScanCrit.com. A Maldição do Colar Cervical. ScanCrit.com. 2013. Acesso 9 de Março de 2018.
3. Advanced trauma life support, 9th ed., American College of Surgeons; 2012.
4. Rogers WA. Fracturas e luxações da coluna cervical; um estudo de resultado final. J Bone Joint Surg Am. 1957;39A(2):341–376.
5. Bohlman H. Fracturas e luxações agudas da coluna cervical. Uma análise de trezentos pacientes hospitalizados e revisão da literatura. J Bone Joint Surg Am. 1979;61(8):1119-42.
6. Gunby I. Novo enfoque na lesão da medula espinal. JAMA. 1981;245(12):1201-6.
7. Podolsky S, Baraff LJ, Simon RR, Hoffman JR, Larmon B, Ablon W. Eficácia dos métodos de imobilização da coluna cervical. J Trauma. 1983;23(6):461-5.
8. Hoffman JR, Mower WR, Wolfson AB, Todd KH, Zucker MI. Validade de um conjunto de critérios clínicos para excluir lesão da coluna cervical em pacientes com traumatismo craniano. N Engl J Med. 2000;343(2):94–99.
9. Stiell IG, Wells GA, Vandemheen KL, et al. A regra canadiana da coluna cervical para radiografia em pacientes com traumatismo em alerta e estável. JAMA. 2001;286(15):1841–8.
10. Graziano AF, Scheidel EA, Cline JR, Baer LJ. Uma comparação radiográfica dos métodos de imobilização cervical pré-hospitalar. Ann Med. Emerg. 1987;16(10):1127-31.
11. Lador R, Ben-galim P, Hipp JA. Movimento dentro da coluna cervical instável durante a manobra do paciente: o fenómeno do pivot-shift do pescoço. J Trauma. 2011;70(1):247-50.
12. Domeier RM, Frederiksen SM, Welch K. Avaliação prospectiva do desempenho de um protocolo extra-hospitalar para imobilização selectiva da coluna vertebral utilizando critérios clínicos de desobstrução da coluna vertebral. Ann Med. Emerg. 2005;46(2):123-31.
13. Hauswald M, Ong G, Tandberg D, Omar Z. Imobilização extra-hospitalar da coluna vertebral: o seu efeito na lesão neurológica. Acad Emerg. Med. 1998;5(3):214-9.
14. Sundstrøm T, Asbjørnsen H, Habiba S, Sunde GA, Wester K. Uso pré-hospitalar de colares cervicais em doentes traumatizados: uma revisão crítica. J Neurotrauma. 2014;31(6):531-40.
15. Lockey DJ, Coats T, Parr MJ. Aspiração em traumas graves: um estudo prospectivo. Anestesia. 1999;54(11):1097–8.
16. Goutcher CM, Lochhead V. Redução na abertura da boca com colar cervical semi-rígido. Br J Anaesth. 2005;95(3):344-8.
17. Stone MB, Tubridy CM, Curran R. O efeito dos colarinhos cervicais rígidos nas dimensões das veias jugulares internas. Acad Emerged Med. 2010;17(1):100-2.
18. Mobbs RJ, Stoodley MA, Fuller J. Efeito do colar cervical duro sobre a pressão intracraniana após lesão da cabeça. ANZ J Surg. 2002;72(6):389-91.
19. Colégio Americano de Médicos de Emergência. Gestão de EMS de Pacientes com Potenciais Lesões na Coluna Vertebral. Ann Emerg Med. 2015;66(4):445.
20. Associação Nacional de Oficiais de EMS do Estado. Modelo Nacional de Directrizes Clínicas do EMS: Spinal Care.
21. Secção Conjunta sobre Distúrbios da Coluna e dos Nervos Periféricos da Associação Americana de Cirurgiões Neurológicos (AANS) e do Congresso de Cirurgiões Neurológicos (CNS) (2013). Directrizes para a gestão de lesões agudas da coluna cervical e da medula espinal. Neurocirurgia. 2013; 60 Suppl. 1:82-91.